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Dia 2 - Maputo-Namaacha-Machava

Maputo, 26 de novembro de 2022, sábado


QUANDO O DESPERTADOR NÃO TOCA
Bolas! Adormeci!!!!“. Tinha combinado com o Fred acordar cedo, bem cedinho, para irmos, junto com o Elísio, à Namaacha. E o que fiz eu? Adormeci! Não, não ouvi o despertador. E sim, coloquei o despertador! E não, não tocou.

Algo, ou alguém, no meu sono profundo deve-me ter gritado um sonoro “Acorda!!!!” e eu, sobressaltada, emergi repentinamente daquele meu outro mundo, com uma dose exagerada de “Ó meu Deus! Ó meu Deus! Logo no primeiro dia!?!?! Despertador! Porque não tocaste?!!

Acordar repentinamente, num espaço completamente diferente, com a noção clara de que estamos atrasados, obriga a um esforço redobrado de enraizamento, para um rápido controlo da situação. O desafio torna-se tão mais complicado, quantos mais e diferentes obstáculos encontrarmos pela frente. Neste caso o meu grande obstáculo foi um: a rede.

Sim… a rede… a abençoada rede, que me permitiu dormir um sono descansado e tão merecido, sem receio de picadas de melgas, mosquitos ou outros insetos voadores para mim desconhecidos, transformou-se numa teia e no meu maior obstáculo entre a cama e o chão.

Demorei algum tempo… mas assim que me desembaracei e consegui pôr um pézinho 40 no chão, dirigi-me aos tropeções para a porta do quarto, com a esperança silenciosa de que não tivessem partido sem mim. É estupidez claro! Não faria sentido irem sem mim. Mas, no meio de toda aquela momentânea confusão, a minha razão estava completamente dormente.

Ainda de túnica turca azul comprida vestida, abri a porta e dei de caras com o Fred a um metro de mim, encostado à ombreira da porta da cozinha:
– Bom dia Zé! Dormiu bem?
Que vergonha! Atrasada, e a sair toda despenteada (bom, isso é o meu normal :P) e de camisa de dormir”, pensava eu, ao mesmo tempo que me esforçava para desvalorizar e tentar encontrar alguma graça na situação.
Também adormeci, por isso relaxe! – disse ele, rindo – mas vamos tentar sair o mais cedo possível. O Elísio já cá está. -.
Suspirei de alívio.

Voltei para o quarto para me arranjar o mais rápido que me era possível e, enquanto me despachava, os porquês do silêncio do despertador não me saiam da cabeça. Odeio falhar sem saber o porquê. Peguei no telemóvel et voilá: – “Pois… ‘tá certo… Selecionei o alarme para a hora certa, mas estava agendado para tocar entre segunda e sexta-feira. Era sábado…

VESTIR A RIGOR
Terminei de arrumar toda a artilharia na mochila (camara, objetivas, GoPro, Powerbank, cabos e afins) e vesti-me “ao meu rigor” para uma itsy bitsy “expedição” em África.

Sempre, mas sempre, gostei do estilo safari. Sabe-se lá porquê. Adorava ir à loja Coronel Tapiocca que existia no Monumental em Lisboa, já há muito tempo encerrada. Arregalava os olhos com todas as cores e derivados de caqui, calças que se transformavam em calções, saias-calções, curtas e compridas, com ou sem pregas, peças de vestuário cheias de bolsos, bolsinhos e presilhas para prender uma parafernália imensa de acessórios não uteis para uma vida na cidade. Uma visita à loja era isso: imaginar-me, em expedição, a usar todos aqueles acessórios. Tudo muito simples, confortável e prático para uma pessoa curiosa, aventureira, e sempre em expedição.

That’s quase me! Quase… porque não cumpro no essencial, no “sempre em expedição” (só se for na minha cabeça). A minha experiência de vida “expeditiva” resume-se apenas a um parágrafo:
Caminhadas fotográficas sem destino definido, à descoberta do que tiver de ser descoberto na minha querida cidade, Lisboa. Para não me ficar por aqui, puxo dos cordeis da memória para catrapiscar as minhas maravilhosas aventuras dos 15 anos com os meus amigos pela serra de Sintra, dos 20 anos com amigos no Gerês, dos 30 anos com amigos em espeleologia no Almonda (experiência a roçar o traumático 😊) e, há 3 anos, em aventura, a solo, em introspecção, a “penantes”, sem carro, pelos montes e vales no interior norte de Portugal. Nada mais do que isso. Nada de expedições que justifiquem o uso de tecidos e acessórios práticos e cheios daquele charme tão ao jeito do Indiana Jones 🙂 .

Pois bem, tenho a sorte de ter uma prima, a Landa, que é realmente experiente em safaris e que tem toda uma parafernália de vestes e gadgets para o efeito. Mais sorte tenho, por ela ser uma querida e confiar-me as suas peças, já com muitas histórias vividas, e ainda por cima… [rufem os tambores] do Coronel Tapiocca!

Mesmo estando um pouco mais chubby do que é habitual, e as calças cheias de bolsos não ajudarem (em nada!) a camuflar essa diferença, resolvi vestir-me a rigor. Acho que na minha cabeça, se incorporasse esse tempo, esse das antigas expedições ao jeito dos meus, talvez… talvez! me fizesse ficar mais perto do que eles um dia sentiram e, quem sabe,… senti-los.

MATA-BICHO
Assim que saí do quarto e entrei na cozinha, o Fred perguntou-me se queria café. Claro que queria. O dia só começa depois de um café 🙂 Mas o café do Fred, não era apenas um café.

Sim…, o Fred é da tribo dos apreciadores do bom café. Seleciona o café, mói os grãos, utiliza uma cafeteira de balão com gargalo em madeira, tudo a preceito, e o seu café é, de facto, ma-ra-vi-lho-so.

Há alturas em que gostava de ser assim, pessoa do culto do café, do chá, do vinho, do pastel de nata (deste até me aproximo, sou daquelas pessoas que os saboreia à colher), dos sabores. Gosto de estar com pessoas assim. Ver e aprender como apreciam as várias e imprescindíveis longas etapas, cada uma com objetivos sensoriais diferentes. Um tempo dedicado apenas e só ao processo de criação de uma sensação especifica, harmoniosa e prazerosa.

Bebi vagarosamente “O café” no alpendre das traseiras da casa, enquanto pensava e ia introduzindo notas rápidas no meu Google Keep.

Se for bem a ver sou bem mais brasileira do que portuguesa/francesa, moçambicana ou inglesa no que diz respeito à primeira ingestão matinal. Não mato o bicho da fome (mata-bicho), não quebro o jejum (breakfast), não como um almoço pequeno (pequeno-almoço), mas sim, e sempre, um café da manhã.

A CAMINHO DA NAMAACHA
Desta vez fomos no carro do Fred. O Elísio ia a conduzir, do lado direito, eu no lugar do pendura e o Fred, um gentleman, deu-me o seu lugar e foi lá atrás. Ainda lhe disse para trocarmos quando ele quisesse, mas não o fez.

De Maputo à Namaacha
Saímos de casa às 08:29 AM e fomos em direção à Matola. O comércio de rua, na estrada a que nós portugueses chamamos habitualmente por rua direita, é efervescente.

Tenho plena noção de que fui uma grande gralha durante grande parte do caminho. A novidade, a curiosidade e a alegria era tanta que não conseguia estar um segundo quieta.

Da Matola seguimos em direção à Namaacha. Uma estrada interminável, direita, muito pouco cuidada, mesmo para um carro 4×4. À medida que íamos avançando para o interior de Moçambique a vegetação ia gradualmente mudando.

Assim que chegámos à Namaacha, o Elísio parou o carro e saímos um pouco para esticar as pernas.
Caminho para a Casa da Namaacha

Da Namaacha à casa (da Namaacha)


A Namaacha é uma terra bonitinha. Muito simples e com muitas casas abandonadas. Aliás, essa é uma das imagens mais fortes que guardo de toda a minha viagem a Moçambique. Muitas casas, lindas, abandonadas. Muitas construções não terminadas. Mas na Namaacha, tudo o que não está abandonado e tudo o que é de uso da comunidade pareceu-me primorosamente cuidado.

Voltámos para o carro e seguimos viagem. Passámos por um campo de futebol no nosso lado direito e o Fred referiu que a estrada perpendicular imediatamente anterior ao campo era o caminho mais direto para a casa que outrora foi do meu pai. Mas concordámos em não arrepiar caminho, e em repetir o caminho que eles haviam feito há um ano, em 22 de agosto de 2021, quando foram à procura da casa, baseados apenas em algumas poucas fotografias.

Quase na saída da Namaacha chegámos a uma bifurcação da estrada. Os carros que estavam à nossa frente seguiam pela estrada da esquerda, com mais sombras. Era o caminho para a fronteira, já com guardas à entrada. Nós, seguimos pela estrada à direita, vermelha, com menos árvores e vazia de carros.

Pouco depois de entrarmos nessa estrada, ao ouvir o Elísio a dizer – Estamos perto – lembrei-me que tinha a GoPro da minha prima Cris (a dona da mala :)) comigo. O Elísio parou o carro para eu colocar a “cena” a filmar presa na minha cabeça. Confesso. Foi um stress. Não me tinha preparado para uma coisa tão simples e ridícula num momento tão especial 😅

Bom! Lá seguimos viagem, nós os três e o apêndice que em nada me favorecia. “Mas também… no meio do mato ninguém repara. Que se lixe!“, pensei eu. Agora que vejo as fotografias que o Fred me tirou… (suores frios…) devia ter pensado um pouco melhor. Enfim, é o que é.

À medida que íamos percorrendo o caminho, o Fred e o Elísio iam dizendo – Foi aqui que falámos com a senhora polícia -, – aqui é a casa do Régulo Filimore -, – foi aqui que encontrámos o corredor português que nos fez voltar atrás e ir à casa do Régulo, onde a sua senhora o recordou que na caminhada do dia anterior tinham passado pela casa e lhe relembrou a sua localização -.

Depois de ter feito esta viagem com eles, fico ainda mais pasma com tudo o que aconteceu e que resultou no feliz encontro da casa. A vontade é sim um fator essencial, e ambos tinham muita! Mas não era suficiente para encontrar aquela casa no meio do nada. Foram demasiadas coincidências num curto espaço de tempo, que só forças invisíveis, inexplicáveis, anjos! poderiam proporcionar.

A estrada parecia interminável. O silêncio foi-se apoderando aos poucos do carro. Todos a olhar para o caminho e para a direita. Caminho e direita. Comecei a ficar ansiosa. Nunca mais chegávamos. Foram o quê? Quinze, vinte minutos de caminho a mais?

A dada altura olhei através da janela ao lado do Elísio e catrapisquei a casa. – Acho que a vi. Será? – disse, rindo-me entusiasmada. O Elísio também ficou com a sensação de a ter visto. Mas ficou a dúvida no ar. Continuámos silenciosamente no nosso caminho até que, de repente, os três apontámos e dissemos, em simultâneo “Ali!“, todos contentes.

Saímos da estrada, para um caminho ainda mais esburacado, e seguimos pelo caminho mais à direita. Descemos devagarinho. Um buraco. Abrandar. E ao fim de não sei quantos lentos buracos, parámos o carro em frente ao portão do terreno da Casa da Namaacha.

Estava meio elétrica, meio parva. Ansiosa, incrédula, contente e nervosa. Entrei automaticamente em modo defensivo, para proteger o meu coração. Não foi premeditado, aconteceu. Nestas alturas ou fico completamente silenciosa, ou falo sem parar de tudo o que não tem nada a ver. Foi uma misturada de tudo em diferentes momentos.

A Casa da Namaacha
Saímos do carro. No muro que limitava o terreno da casa estava sentada uma moça, de nome Hortênsia. Cumprimentámo-la e informámos que íamos ver a casa. O Fred tinha telefonado ao régulo ainda antes de sairmos de Maputo para saber se podíamos visitar a casa e o régulo tinha respondido que sim.

O portão, de um terreno já sem muros, estava aberto. Entrámos.
Cruzámo-nos com vários “mémés” no caminho. Um em especial chamou-me à atenção por ter uma mancha em forma de coração…

Na Casa da Namaacha

Ei-la!
Eram doze horas em ponto quando vi a casa pela primeira vez, sem nada no meio que me estorvasse a vista. Não é que estivesse atenta, ou olhasse para o relógio que não tinha, mas o meu alarme de meio-dia, que me esqueci de desligar durante as férias, resolveu quebrar de forma estridente a paz campestre que nos envolvia.

Fotografia de Frederico Paiva

Confesso que, à medida que me ia aproximando da casa, o meu nível de ansiedade aumentava, chegando a atingir níveis críticos. Sentia-me empurrada em direção à casa, como se tivesse uma multidão de meus queridos nas minhas costas, a acompanharem-me, observando entusiasmados a minha sentimental missão: “Vá Zé, só falta um bocadinho

Tinha um sentimento absurdo de urgência em encontrar uma entrada, para entrar e correr para tocar naquela parede de pedaços de vidro que um dia o meu pai preencheu.

A entrada, seria supostamente pelo mesmo lugar onde, no ano passado, o Fred e o Elísio haviam entrado: por uma janela grande aberta por debaixo do grande alpendre. Ainda me faltava andar um pouco mais em redor da casa para lá chegar.

A meio do caminho para a suposta entrada, vi uma das portas completamente escancarada e, ao perceber que ia entrar na casa mais cedo do que aquilo para o que estava emocionalmente preparada, soltei um “Ó não!“. Não estava nada à espera! “Já?!?

E como se existisse uma linha de pesca invisível e eu fosse um peixe acabado de apanhar, fui imediatamente puxada até tocar naquela parede repleta de vidros coloridos. Os restos de vidro que o meu pai trouxe do fundo dos fornos da Companhia Vidreira de Moçambique…

Foi um turbilhão de emoções imenso… Precisava tanto de um abraço naquele momento…
Rodei, vi o Elísio, rodei mais um pouco e vi o Fred a entrar em casa. Sorri. “Sim, tu!” – pensei – “hoje estou aqui, porque tu apareceste e quiseste encontrar a casa por mim, uma mera desconhecida. É tudo graças a ti…”. Chamei-o, abracei-o e no meio do abraço disse-lhe “Obrigada…“.


Muitas imagens. Diferentes tempos.
Olhava para todo o lado e, a cada metro que a minha vista alcançava, reconhecia alguma cena de uma fotografia. As cenas do passado sobrepunham-se em catadupa ao espaço nu e abandonado do presente. Tudo numa sintonia harmoniosa. Até que os meus olhos começaram a chegar a algumas áreas diferentes que impediam o match perfeito entre o passado das fotos e a visão do presente. 

Entre nós os três começámos a tentar desenhar as paredes invisíveis que desapareceram e a baixar muros entretanto erguidos. Eu cheia de certezas e logo de seguida cheia de dúvidas. O Elísio, entusiasmado a participar, e o Fred, mais calmo e pensativo, a apontar teorias mais certeiras. Acho que no fim acabei por lhe dar razão a praticamente todas elas.

Não sei quantas voltas dei na sala em redor da lareira. Saí pelas portas envidraçadas em direção à frente da casa. Voltei a entrar e fui diretamente à zona dos quartos. Tudo igual ao antigamente. Três degraus, o quarto das visitas, depois o quarto do meu pai e ao fundo o Winston Churchill. A vista do quarto do meu pai dava para uma árvore, uma ruína do que me parecia um lago e para o mémé do coração.

Acordar ali devia ser algo arrebatador. Saí do quarto, imaginei-me a descer os três degraus descalça, a ser inundada pela luminosidade da sala, atravessá-la em direção aquelas extraordinárias e enormes portas de vidro, abri-las e levar com aquele ar e vista desafogada logo pela manhã. Uau!

Dei várias voltas ao exterior da casa. O terreno, ou como diz o Fred, o talhão, é bem grande. Tem uma piscina grande vazia e uns dois pequenos tanques. Um é mais lago do que tanque, mas tem a forma de um coração (o meu lado piroso a vir ao de cima :)). Não sei se a piscina grande é ou não do tempo do meu pai. A única coisa que sei é que o meu pai tinha piscina e que esse foi um dos motivos para vender a casa, porque não tinha um fim-de-semana sossegado com a casa sempre cheia.

Trouxe pequenos pedaços de pedra da Namaacha que se encontravam no chão. Colhi flores junto à janela do quarto do meu pai. Deambulei por ali. Num desses momentos uns jovens passaram pelo terreno a atalhar o caminho. Falámos com eles e perguntámos se sabiam quem era o dono e o porquê da casa estar abandonada. Deram-nos um contacto e depois seguiram o seu caminho. Estranhamente a GoPro, sem eu fazer nada desligou-se nesse momento. Há coisas que realmente não entendo…

A visita ao segundo andar da casa não era algo que ansiasse, até porque era algo que antes não existia. Mas subimos. E qual não foi a minha surpresa quando vi que a porta para o telhado estava aberta! Que vista maravilhosa, que pedaço de mundo incrível!

O que mudou na casa?
No piso térreo da casa, para além do visível abandono, há 3 grandes diferenças face à casa original. As que me incomodam por sentir que estragaram um pouco da estética da casa, desvalorizei-as e não perdi muito do meu tempo com elas.

A cozinha: A cozinha original devia ser 1/4 do tamanho da atual, que hoje ocupa uma área superior à dos dois quartos juntos. Completamente desproporcional… algum motivo deve ter existido para aquilo, mas não faço ideia qual….

As escadas para e o segundo piso: A casa original tinha apenas o piso térreo. Os quartos tinham, e ainda têm, um pé direito menor que a sala porque são ligeiramente mais elevados à altura de, pelo menos, três degraus. Não existia o segundo andar. O acesso para as escadas que hoje dão para o segundo piso, era antes uma de duas grandes portas de vidro, que se encontravam à esquerda do painel de vidros coloridos. O segundo andar parece ter sido feito para incluir uma suite: um grande quarto e um WC que, por sua vez, tem uma porta que dá acesso ao telhado da casa.

A ampliação da sala, com o fecho do alpendre dos carros: Esta é provavelmente uma das alterações que, para mim, depois de digerir bem o assunto, acho que fez algum sentido, senão todo. Acho que se fosse eu (como se isso agora interessasse alguma coisa, enfim…) teria feito exatamente o mesmo, com uma pequena, mas grande diferença. Faria em vidro tudo o que fizeram em pedra, mesmo sendo pedra da Namaacha. Mas acho que compreendo porque o fizeram. Muito provavelmente por segurança, proteção, já que, para lá da lareira, não há qualquer visibilidade. Num dos cantos desta nova divisão (antes alpendre dos carros) há um nicho com uma amálgama de vidro fundido. Ainda achei que fizesse parte da casa original porque estaria no mesmo lugar de um dos pilares originais do alpendre, mas vendo as fotografias da casa tiradas pelo meu pai, tal não existia.

De facto, o Fred tem razão. Ao seu jeito, os vários donos desta casa depois do meu pai, gostavam muito dela. Preservaram-na em grande parte e salvaguardaram o seu núcleo. Com umas mais ou menos felizes alterações, não deixa de ser A CASA.

Temos de ir, ‘né?
O tempo estava a passar e eu sabia que teríamos de regressar em algum momento. Mas… eu não queria sair dali… Andei a adiar os passos de saída durante um bom bocado de tempo …

Sentia-me no centro de qualquer coisa com uma força maravilhosamente imensa. Um lugar, onde o tempo nos parecia dar o poder de o parar, somente para nós, enquanto todo o mundo parecia continuar a avançar, ao nosso redor. Uma sensação semelhante ao estarmos apaixonados, onde não há mais nada para além de nós.

Foi esta casa que mudou tudo para mim e, graças a ela, e por ela, estava finalmente em Moçambique.
Mas a partida era inevitável…

Conversei com o meu pai, como o faço tantas vezes. Sempre teve e tem a resposta certa (confiante) para mim:
"Não me quero ir embora pai...."
- Mas o que mais tens para fazer aqui?
"Mais nada... Mas então, vou-me embora assim? Sinto-me tão bem aqui..."
- Vai e não olhes para trás. Não deixa de custar, mas torna tudo mais fácil. Pensa que é apenas uma decisão de agora, e não definitiva. Se quiseres muito, não há obstáculos que te impeçam a voltar.

Assim que comecei o processo de "até já" à casa, lembrei-me dos autocolantes com o QR Code para o Acervo Fotográfico do meu pai. Fui com o Elísio ao carro para os buscar e quando lá chegámos tínhamos o muro onde antes estava sentada a Hortência, repleto de meninos entre os 7 e 11 anos.

Voltámos à casa, colei um dos autocolantes (o Fred chama-lhe de adesivos) no vidro da sala e o Elísio trepou para colocar mais um na janela mais acima. Pode ser que alguém que se interesse pela história da casa, aceda ao link, e veja algumas das fotografias que o meu pai fez há 60 anos atrás.

De regresso ao carro, estivemos a falar com os miúdos. Que miúdos tão giros. Uns tímidos, outros serenos, outros brincalhões e obviamente, o chefe esperto e gozão do clube. Tirei-lhes algumas fotografias e imprimi com a minha Mi Printer uma fotografia para cada um deles.

No fim, expliquei-lhes porque é que estava ali. Falei da história da casa, do meu pai, e pedi-lhes para a protegerem, para que não fosse vandalizada. Podia ser que assim a sua história perdurasse.

A casa no google Maps: https://maps.app.goo.gl/kRnoXeT46RAJ8vss8


CASCATAS DA NAMAACHA
Cascatas da Namaacha

Assim que o Elísio ligou o carro, seguiu em frente. Não deveria ir para trás? Não percebi por que caminhos nos estava a levar. Assim que falou, disse que estava à procura do caminho para as Cascatas da Namaacha. Recordava-se de lá ir em passeio e queria levar-nos lá.

Pois e foi uma excelente ideia! Já que não tinha conseguido encaixar a visita à Suazilândia nesta minha vinda a Moçambique, ao menos iria ver tudo o que tinha direito.

A Namaacha é conhecida sobretudo, pelo menos que eu saiba, pela sua água, e pelas suas cascatas. Não são umas CASCATAS ENORMES, nem mesmo médias, e quando as visitei a água visível era muito reduzida. Na realidade, vi uma cascatinha… Mas é tudo tão bonito!

Se nos abstrairmos de um ou outro canto onde alguém não teve o cuidado de deixar o lugar como o encontrou, quase diria que era um santuário natural intocado pelo Homem.

Andámos a galgar algumas pedras, respirámos aquele ar magnifico, tirámos umas fotografias, e depois pusemo-nos a caminho.


A VIAGEM DE REGRESSO
Este dia foi tão, mas tão intenso, que tenho momentos que ficaram completamente submersos. Pouco me recordo da viagem de regresso. Não sei se falei pelos cotovelos ou se virei bicho em introspeção. No entanto tenho um ou outro momento que me recordo, como o de querer fotografar do carro, com a objetiva Zoom, uns miúdos a correr.

Os miúdos envergonhados acabaram por se esconder e, assim que desviei a camara, vi, através da lente, umas quatro miúdas, ao longe num canto, a rirem-se e a olharem para nós. Eram todas bonitas, mas uma destacava-se pelo seu ar mais descontraído. Fotografei-as e quando vi a imagem que tinha captado, fiquei tão satisfeita com o resultado que gritei para fora do carro um “És linda!” [Ah Ah Ah 🙂 A sério… às vezes não jogo com o baralho todo]. Mas, de facto… as mulheres moçambicanas são mesmo bonitas.

No regresso, e ao ver que ainda tínhamos algum tempo, perguntei ao Fred se poderíamos passar pela Machava para ver se encontrávamos a antiga CVM – Companhia Vidreira de Moçambique. Queria ver a vidreira onde o meu pai trabalhara e de onde tinha aproveitado os restos de vidro que ficavam nos fornos, para o preenchimento daquela parede mágica na Casa da Namaacha.

Não havia como nos enganarmos no caminho. A fábrica era na Machava e ficava numa rua chamada: Rua da Vidreira.


MACHAVA - COMPANHIA VIDREIRA DE MOÇAMBIQUE (CVM)
Chegados à Machava, procurámos a fábrica.
Já próximo do que seria o nosso destino, reconheci rapidamente um dos contornos da fábrica por detrás de um edifício. Mesmo na dúvida, porque nunca ali havia estado, tinha muito presente na minha memória as fotografias antigas da fábrica tiradas pelo meu pai e por fotógrafos aquando da visita à fábrica pelo ministro do Ultramar Vasco Lopes Alves, no ano de 1959.

Parámos em frente ao portão. Estava fechado. Percebemos, pelo aspeto, que a fábrica estava desativada, mas, ao vermos um segurança, confirmámos que não estava abandonada.
Pedimos para entrar? – perguntámos uns aos outros e ficámos ali, meio que num impasse.
Pensei “Bolas Zé! É agora ou nunca! Sabes lá se alguma vez vais cá voltar? Não fazer nada, resulta em nada, fazer algo resulta sempre em alguma coisa”. Posto isso, agarrei em mim e, confiante, dirigi-me ao portão.

Chamei o segurança e após os devidos cumprimentos, expliquei quem eu era, quem era o meu pai, e o porquê da minha imensa curiosidade em visitar a fábrica. Houve ali um momento meio que de assimilação, até que chamou outro segurança que, pelo que depreendi, seria seu superior. Expliquei tudo novamente e …. esse outro segurança sem mais demoras e muita conversa começou a guiar-nos ao redor e depois pelo interior da fábrica.

Sim! Tivemos direito à visita completa, desde o piso térreo, até ao cucuruto da fábrica.
A fábrica é enooooooorme! Os fornos, muitos, grandes, estão ali, parados. Percebe-se claramente o investimento brutal que ali foi feito tanto ao nível de maquinaria pesada, bem como em processos fabris. Dá pena ver algo assim, parado no tempo.


Já ouvi várias histórias, motivos (o que quiserem chamar) sobre o encerramento desta fábrica. Uma conjugação infeliz de múltiplos fatores que a levou a este destino. Sinceramente não me quero envolver em discussões sobre o que não sei, e sobre o que acho que sei mas que é baseado no diz que disse. Seja o que for, não deixa de ser triste.


Esta fábrica, se recuperada para efeitos de museu, seria, por dimensão, investimento efetuado, equivalente ao museu de eletricidade de Lisboa…


Ainda foi uma visita grande, de pelo menos uma hora, onde percorremos não só o edifício principal, mas também armazéns e os terrenos ao seu redor. Por incrível que pareça ainda existem espalhados por todo o lado montes e montes de cacos de vidro de cores diferentes.

Como recordação, e como referência à parede de vidro da Casa da Namaacha, acabei por trazer comigo uns cacos coloridos, os quais estão hoje guardados numa caixinha junto às pedras da Namaacha e outros itens memoráveis da minha viagem a Moçambique.


FIM DO DIA
Dizer que apaguei depois de tudo isto, é óbvio. Recordo-me da sensação de chegar a casa e querer falar sobre o dia. Mas não conseguia. Tudo o que dissesse era tão pouco. Ainda tinha tanto por processar. Nem me lembro do que foi o jantar.
Só pensava… “Se este foi o meu primeiro dia inteiro em Moçambique e arrebatou-me a todos os níveis, o que mais virá?

Para ver como era a casa da Namaacha na sua origem, na década de 1960, clicar aqui.
Este artigo foi originalmente publicado a 10 de fevereiro de 2023 na primeira versão deste blog "Eu sou por Tu Foste" e agora migrado para aqui.

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