Avançar para o conteúdo principal

Dia 3 - Maputo, lá para as bandas de Sommerschield

Maputo, 27 de novembro de 2022, domingo


ACORDAR DEVAGAR
Sim! Acordei devagar. Não tinha pressa.

O Fred e a Bia tinham-me dito no dia anterior que iam despedir-se de uns amigos ao Aeroporto na parte da manhã e que depois regressariam.

Arrumei-me sem saber se estaria alguém em casa. Era domingo, mas isso não queria dizer rigorosamente nada. Desde que cheguei que a casa tinha sempre gente e não iria mais sair do quarto em sobressalto, desgrenhada e de túnica de dormir como o fiz na minha primeira manhã. Não é que lide mal com os constrangimentos, mas se puder evitá-los, tanto melhor.

ESTAMINÉ DE CAFÉ DA MANHÃ
Assim que cheguei à cozinha conheci a D. Lucinda. Senhora reservada, mas de sorriso fácil. Começámos bem 😊. Enquanto a D. Lucinda tratava das lides agarrei na minha coluna de som, no estojo de canetas, no meu caderninho, telemóvel e Canon e transportei tudo para a mesa do alpendre.

Na prática montei o meu estaminé lá fora para curtir a manhã, com música, e escrever. A mesa ainda estava com aquela toalha preta, de próteas, super gira, que fez furor entre os meus familiares e amigos no dia anterior (juntamente com a Laurentina preta que estava em destaque na fotografia).


E QUE TAL ESCREVERES ZÉ?
Tinha como objetivo muito claro escrever no meu caderninho, ao jeito de um diário, todos os dias da minha viagem. Pois bem… Eu tentei!

Esta foi uma das minhas primeiras entradas no “diário” desde a minha chegada a Moçambique:

Só agora? Sim! Só agora! Quero tanto aproveitar todos os minutinhos que prescindo de escrever aqui, mesmo correndo o risco de deixar de registar coisas importantes. Sei que vou deixar muitas coisas por escrever... Não dá para escrever e descrever tudo o que estou a viver e a sentir. Tem sido tudo tão intenso! (…) Enquanto escrevo olho para o laptop do Fred para ver se os vídeos da GoPro que fizemos ontem na visita à Namaacha carregam de vez para a drive do Google. Se eu soubesse de antemão que ia ser assim, tinha gravado os vídeos muito mais curtos. Deixei a camara a correr... Grande erro!
Sim! Ontem fomos à Namaacha!!!! Mas antes de começar a contar como têm sido os meus últimos dias queria escrever que... os sons aqui são tão diferentes.... Aqui, sentada, oiço sem os ver, pássaros que nunca ouvi, sons que nunca experimentei. Tudo aqui é tão diferente, até o tempo que o tempo demora é diferente, tudo aqui é tão bonito. Estou apaixonada por este continente, este país, este lugar, esta gente.
E está quente!


Resultado: Não liguei a coluna de som e pouco mais escrevi.
Hoje, passados 3 meses, percebo que passei toda a minha viagem em modo de absorção e num claro “digeres depois Mary”.


PLANEANDO VISITAS A CASAS QUE FORAM DO MEU PAI
Assim que regressaram do aeroporto, o Fred e a Bia vieram ter comigo ao “meu estaminé” para combinarmos o resto do dia. Já tinham combinado irmos almoçar fora com uns seus amigos, o Flávio e a Fabi, e ponderavam irmos à procura das casas do meu pai, antes da sua última residência em Maputo no Prédio Horizonte: a casa de Sommerschield e a casa da Rua Egas Moniz.

Sobre a casa de Sommerschield…
Da casa de Sommerschield tinha a informação de que seria numa rua pequenina a descer em direção à antiga avenida António Enes. A casa em frente era de um médico e amigo do meu pai. Pelas fotografias do Acervo do meu pai e, com ajuda de alguns dos seus amigos, sabia que tinha dois andares, uma escada linda, e uma sala com vários desníveis. Tinham-me falado que seria na Rua Baltazar Teles, mas sem certezas até porque o nome da rua muito provavelmente já não seria o mesmo.

Mostrei as fotografias do Acervo ao Fred e à Bia, e a Bia reconheceu logo o murinho em torno da casa. Disse que agora, para além do murinho havia uma vedação alta metálica, como hoje existe em quase todas as vivendas privadas na cidade de Maputo. Pelos vistos a casa que era do médico do meu pai agora é a Embaixada de França.

Sobre a casa da Égas Moniz…
Da casa da rua Égas Moniz (sim, é com acento… I know, I know…) poucas dicas e fotografias tinha. Sabia que tinha sido a casa anterior à de Sommerschield e que era muito pequenina e estreitinha. O meu pai era solteiro e sem (acho eu!) nenhuma namorada assumida até 1959. Deve ter vivido nesta casa entre 1957 e 1960, ou seja, enquanto foi diretor na CVM* e até assumir o cargo de diretor na Distribuidora, Lda** e a vida nesta casa coincidiu com a construção da casa de férias e de fim-de-semana da Namaacha no ano de 1959.

Fotografias do meu pai ao exterior da casa ainda não encontrei nenhuma, apenas tenho fotos do meu pai e amigos no exterior da casa mas tiradas da casa para a rua. Graças aos contactos valiosos da Tia Maria João Seixas lá consegui descobrir que era uma casa na Rua Egas (Égas, sorry!) Moniz. Ou seja… para descobrir a casa na rua teríamos de recorrer aos detalhes coincidentes nos fundos das fotografias que tinha do meu pai.


"DESFRUTE" DE NOVOS AMIGOS
Os amigos do Fred e da Bia chegaram lá a casa e fomos apresentados 😊. Não sei que voltas demos, mas acabei por ir com eles no seu carro para o restaurante. No caminho olhava para todo o lado e fazia perguntas. Eles, impecáveis, iam respondendo e contando pormenores da sua vivência em Maputo. 

Estava um bocado perdida sem saber bem onde estava. No final do dia lá procurei no Google Maps e o restaurante onde fomos “Desfrute” ficava na esquina da Rua da Argélia com a Av. dos Mártires da Machava, ou seja, a um quarteirão do Museu de História Natural.

O restaurante era super arejado e muito simpático. Sentamo-nos os 7 numa mesa aumentada na esplanada.

Foi um almoço muito agradável, saboroso, e acima de tudo didático. Se formos bem a ver, desde que havia chegado a Maputo tinha ido direta para casa, no dia seguinte fui num 4×4 para a Namaacha, e depois regresso a casa. Ainda não tinha visto nada de Moçambique fora da minha bolha. Precisava de facto de levar com um baldezinho de realidade para me preparar para os dias seguintes. Perceber que parte da população moçambicana não tem cartão de cidadão e todo os problemas que daí advêm era uma coisa que não me passava sequer pela cabeça existir, ali. É nestas alturas que caímos em nós e percebemos a importância do local, país onde nascemos. E na sorte que alguns temos.


NAMAACHA EM STAND-BY
Da mesma forma que a minha entrada no diário de manhã sobre a Namaacha foi curta, grossa e extremamente vaga, as conversas à mesa sobre o dia anterior foram diminutas. Talvez algumas perguntas sobre o meu pai a que eu respondi o que sabia e o que supunha, mas nada mais. 

Acho que eles perceberam que eu estava meio perdida e a tentar encaixar o turbilhão de informações, sensações e emoções dos últimos dias. Perdida entre o ontem, não meu, de fotos tão vivas do século passado, o ontem meu e a tentar encaixar-me, constantemente no presente, numa realidade e rotina tão diferente da que estou “europeiamente” habituada. Talvez por isso, não puxaram muito por mim. Nem acho que iria deixar cair a impensada barreira de proteção que criei ao meu redor para conseguir lidar com tudo durante toda a viagem.

PASTEL DE BACALHAU
Sobre os comeretes… houve aquele momento do: “Quer Pastel de Bacalhau Zé?”. Confesso que me desmanchei a rir 😊. Estar em Moçambique e comer pastel de bacalhau é para lá de anormal. Só me apetecia perguntar se era da Noruega. Mas o bom senso disse “cala a boca Zé”.

Adoro bacalhau com todos, Gomes Sá, à Brás, Espiritual, com Natas, Pataniscas… mas o pastel… só com feijão, alho, cebola e azeite... Disse que não queria, mas que iria provar para ver como estava, e não é que estava muito bem feito? Muito macio, com muito bacalhau e saboroso!

Optei por pedir um filete de Garoupa que desde a apresentação ao sabor estava impecável.

No final do almoço despedimo-nos do Flávio e da Fabi e fomos à procura das casas que um dia foram do meu pai.


'BORA LÁ VER AS CASAS!
Metemo-nos em marcha pela mão esquerda em direção à zona da Igreja de Santo António da Polana para irmos ao encontro da casa na Rua Égas Moniz. A rua é bonitinha e as acácias em flor dão-lhe aquele toque especial. Agora vinha o novo desafio: descobrir entre 3 casas pequeninas qual seria a casa pequenina do meu pai [risos].

Distância, a pé, entre a casa da Rua Égas Moniz e a casa na Rua Padre Baltazar Teles

A CASA PEQUENINA
A Bia ficou no carro com o mais pequenino e o Fred, a filha mais velha e eu andámos por ali a vaguear. Filmei, fotografei, mas as casas muito embora pareçam as originais, ao passarem a ser estabelecimentos ficam bem mais descaracterizadas. Não ajuda muito o facto de não terem a frente ajardinada, que as tornaria de certo mais bonitas.

A Bia e o Fred votaram que a casa do meu pai seria a segunda casa. Eu? Não senti nada de especial em relação a nenhuma, confesso. Sim, eu ligo a estas coisas… acredito piamente nas reações que o nosso corpo e mente e sei mais lá o quê, emanam, e dou valor áquilo que algo me faz sentir. Ali não senti nada, a não ser uma mera passagem. Posso estar completamente enganada, mas não me puxou. Não obstante, confirmei através das fotos do meu pai e parece-me que, mais uma vez, o Fred e a Bia, tinham razão, era a segunda casa da rua.


A CASA GRANDE
Lá entrámos no carro para ir desta vez à casa de Sommerschield. No caminho passámos pela Igreja de Santo António da Polana! Era a primeira vez que via o “espremedor” que tanto vi em fotos e projeções de slides quando era pequenina! Os jardins ao seu redor estavam primorosamente cuidados e o “espremedor” assim, visto do carro, parecia que tinha parado no tempo sem ficar descuidado.

Chegados perto da rua que afinal se mantém como Rua Padre Baltazar Teles, estacionámos na Rua Damião de Góis bem pertinho de duas casas projetadas pelo Arq. Pancho Guedes. Quase nem dava por elas não tivesse a Bia chamado a minha atenção. Dobrámos a esquina e lá estava ela: a casa de Sommerschield do meu papi! Super vedada, com grades, mas era a própria 😊.

Esta sim, atraiu-me. A casa fica também na esquina e andei por ali para a frente e para trás entre a Rua Padre Baltazar Teles e a Rua Damião de Góis. Devia parecer uma barata tonta, mas enfim. “Tocamos à porta, não tocamos? Mal dá para olhar lá para dentro…” pensei… E toquei. Não deu em nada. Mas tentei. Não seria a última vez que lá iria, pensei eu.

Por fim fomos para casa.


AMANHÃ VOU PARA O TOFO SOZINHA!
O final do dia foi pacífico. Entre a preparação da mochila de roupa e de equipamentos para a viagem de aproximadamente 7 horas para o Tofo, houve espaço para uns belos petiscos patrocinados pelo Fred e pela Bia, uma (ou mais) Laurentina Preta e ainda um passeio pelos jardins do condomínio com os miúdos. 

Descobri que para além da vegetação maravilhosa que já tinha saboreado, havia um macaco, coelhos, uma piscina, parque infantil, casa na árvore e um trampolim (lá chamado de pula-pula).

O Fred também ia viajar de madrugada para a europa, portanto estávamos ambos em modo de saída. A Bia sugeriu que no caminho para o Tofo parasse em Chindenguele para ver a lagoa e o Fred fez-me os alertas devidos sobre não andar com o motorista de carro à noite, não me deixar em ir em cantigas e afins.

Parece que ainda o consigo ouvir a dizer: – Zé…. [pausa] Não ande, de forma alguma, de carro à noite” –. Eu, como boa “menina” 😊 e boa aluna, acatei todas as suas mensagens. Mal sabia eu o quanto ele tinha razão…


Notas:
*CVM – Companhia Vidreira de Moçambique
**A Distribuidora, Lda – Sociedade que procedia à distribuição e venda dos produtos SCC para todo o Moçambique e internacional

Este artigo foi originalmente publicado a 11 de março de 2023 na primeira versão deste blog "Eu sou por Tu Foste" e agora migrado para aqui.

© 2024 Eu Sou porque Tu Foste. All Rights Reserved por @zebmgomes

Comentários