Bilene-Maputo, 2 de dezembro de 2022, sexta-feira
Acordar no Bilene
Não sei a que horas adormeci, mas levantei-me ao primeiro sinal de luz, às 4:30 da manhã. Ainda a espreguiçar-me vi a luz a entrar pela nesga das cortinas como se me chamasse “Vem abre as cortinas e vê o presente que tenho para ti“.
Levantei-me num ápice, afastei as cortinas e vi. Fiz rolar a porta de correr da varanda, saí e senti. Fiquei ali, em pé, parada, a ver a luz do sol a transpor a língua de terra do outro lado da lagoa, a mergulhar lentamente na água, e a ver-se gradualmente ao espelho no leito calmo da lagoa. Um espetáculo da natureza que me fez voltar para dentro a correr, para me calçar, apanhar a câmara fotográfica e sair porta fora.
Arrebatadora caminhada matutina
Passeei em direção ao pequeno cais. Aproximei-me devagarinho dos pássaros que poisavam em cada um dos seus mastros. Com o ranger da madeira, em cada um dos meus passos, e com o som do bater das boias contra o cais, um após outro, voava.
Continuei a caminhar ao longo da margem assistindo ao acordar vagaroso de tudo. Uma fogueira em rescaldo. Canoas velhas e decadentes, outras claramente a uso, sozinhas, ali paradas à espera do seu timoneiro. Um homem a atravessar a lagoa numa canoa com uma passageira, muito provavelmente a caminho do trabalho.
Todas as linhas ao meu redor eram suaves, esbatidas e calmas. Barulho? Só dos pássaros, da água, como um lençol, mole, a fazer festinhas à areia seca, e das cores. Sim, barulho das cores! Tantas cores. Dar uma volta de 360 graus e receber, enquanto giro no meu eixo, as cores do sol quente destemido a aparecer, as sombras a começarem a acordar, o azul de tantos tons da água, a confusão no colorido dos barcos misturado com as madeiras envelhecidas e um ou outro sinal de ferrugem e a luz que faz o lago parecer um manto espelhado.
Se tivesse de resumir numa palavra o que senti na minha mais arrebatadora caminhada matutina de sempre, seria: Paz. Uma sensação de paz enorme, num mundo que não pára mas que anda mais devagar, ali.
Depois da tempestade vem a bonança, dizem. Depois do dia no Xai-Xai veio o Bilene. Aliás, li algures num documento antigo que um dos motivos da fertilidade dos terrenos no Bilene são as cheias do rio Limpopo. Será que continua a ser assim?
Eram muito poucas as referências que tinha do Bilene das fotos do meu pai e por isso fui maravilhosamente surpreendida. Tive pena de a minha agenda não me permitir ficar ali mais uns dias. Se o pouco que vi é assim, como será tudo o resto? Se e quando voltar a Moçambique quero voltar aqui, quero ficar uns dias, quero ir ver as tartarugas, nadar e caminhar, caminhar, caminhar 🙂
Viagem para Maputo
Foi uma viagem bem rápida de 160 km em que vi o que dava para ver de raspão. Vi para onde era Marracuene e quando pensei “eu queria ir ali” já tínhamos passado pela estrada que lhe dava acesso.
Ao aproximar-nos da Costa do Sol comecei a ver cada vez mais gente. Avistei o antigo Autódromo e também pensei “quero ir ali“, mas como estávamos no sentido contrário ao da estrada de acesso, nem pestanejei. Já estávamos perto de casa e, se desse, num outro dia, iria lá com o Fred, com a Bia ou com o Elísio.
Porto de abrigo
Avistámos a casa e a rampa de acesso ao condomínio, dolorosa para a carrinha do Mário, e às 13:00 abri a porta de casa. Pousei a mochila e voltei à rua para me despedir do Mário. Paguei-lhe o remanescente que tinha ficado acordado, dei-lhe uma boa gratificação e agradeci-lhe. Assim que reentrei em casa respirei fundo e senti-me chegada ao meu porto de abrigo! Estava exausta, mas feliz.
Nessa altura ainda não estava ninguém em casa para além do Elísio e da Alice. O Fred estava em viagem de trabalho, a Bia estava a trabalhar e os meninos estavam na escola.
Continuou-me a acontecer o mesmo que no dia em que fomos à Namaacha. Perguntaram-me como tinha sido a viagem e eu, com tanta coisa para contar, mas também ainda por entender e digerir, não soltava um pio. E quando era para adjetivar a viagem, toda e qualquer palavra era extremamente redutora daquilo que tinha sido e que ainda não tinha assimilado. “Foi boa” acompanhada com um sorriso e com um breve resumo em jeito de check-list dos principais lugares onde estive era o máximo que conseguia fazer.
Manjar dos Deuses
Depois de fazer um vídeo curto para a Bia e Fred a informar que já tinha chegado, a Alice, sem que eu lhe pedisse nada, pôs a mesa e disse-me que tinha o almoço preparado para mim! Acho que a únicas refeições minimamente decentes que havia comido nos últimos dias tinham sido o almoço na praia do Xai-Xai e o do primeiro dia no Tofo. Só naquele momento percebi o quanto tinha deixado a minha alimentação para segundo plano…
Os meus olhos devem ter brilhado! Comer num bar ou num restaurante é uma coisa, e ter alguém que se preocupa e nos faz comida, em casa, é um outro nível. As comidas da Alice são maravilhosas, e eu estava com tanta, mas tanta fome, de comida e daquele aconchego de casa, que o que poderia parecer uma normal refeição foi para mim um verdadeiro manjar dos Deuses.
Desabafos
Depois do belo almoçinho andei por ali a cirandar. Ora ia ao alpendre, ora ia ao quarto, passava pela cozinha e conversava com a Alice. Uma barata tonta com uma necessidade enorme de descansar, mas cujo cérebro não conseguia desligar.
Numa das vezes que me sentei na zona “Lounge” do alpendre o Elísio veio ter comigo e perguntou se podíamos falar. Ele e o Mário eram conhecidos e estava meio que apreensivo com o resultado da minha viagem. Disse-lhe que estava tudo bem, que o Mário me protegeu, fez-me sentir segura e levou-me aos meus principais destinos. Tinha ficado claro para mim desde cedo que ele não tinha qualquer noção para o que ia e, por isso, tive de fazer algumas cedências nas expectativas que tinha de lugares a visitar. Adaptei-me tendo em conta as circunstâncias e aproveitei o que pude aproveitar. Fazia parte e aconteceu. E estava tudo bem! Tudo acontece por algum motivo, mesmo que não o compreendamos no momento.
Não lhe disse na hora, até porque ninguém ganha alguma coisa com os “e se’s da vida”, mas tenho a certeza que se tivesse existido disponibilidade para tal teria sido espetacular fazer aquela viagem com ele. Extremamente educado, sensível e com muito boa onda. Fiquei com muita estima pelo Elísio durante a minha viagem a Moçambique. Muito embora ele tivesse menos funções que o Josefa do meu pai, acho que tinha um perfil extraordinariamente semelhante.
Futebol em casa
Ouvir o Gabriel a chegar a casa e a gritar “Tia Zé” ao mesmo tempo que corria para mim foi um quentinho bom para o meu coração. Sentir o crescente de movimentação de crianças na casa com a Helô e as suas amigas a entrarem e a saírem de casa para brincar dava-me aquele conforto familiar que já começava a acusar alguma falta.
Dentro de umas horas seria, não o jogo do mundial de futebol, mas sim os jogos mais esperados desde a segunda-feira que havia passado. Portugal entrava a jogar primeiro, com a Coreia do Sul e o Brasil jogava logo a seguir com os Camarões. Óbvio que ali em casa se iria torcer a cem porcento pelo Brasil mas também por Portugal.
Infelizmente, o final de tarde não começou bem… com Portugal a perder por 1 a 2. Mas, como até simpatizo com a equipa da Coreia do Sul, não foi assim um drama. Só não estava mesmo nada à espera daquele resultado.
A casa encheu-se de amarelo e um pedacinho de azul para ver o jogo do Brasil com Camarões. Só mulheres e dois homens pequeninos 😊 Foi giro até quase ao finalzinho quando os Camarões resolveram marcar já no tempo de compensação.
Foram dois grandes flops, completamente inesperados, que me fizeram pensar que aquele campeonato não iria correr como o desejado e por isso comecei a retirar-lhe a importância nos meus dias, gradualmente.
Vale dos Lençóis
Já estava em casa depois do rebuliço de sensações e emoções por digerir dos últimos dias. Não conseguia arrumar toda a informação que tinha reunido em caixinhas. “Mas quais caixinhas? Ainda nem as tinha montado e muito menos nomeado!“. Deixei para outro dia. Regressei à maior aproximação de uma realidade que conhecia e até vi a minha seleção a jogar, mas perdemos. Era melhor terminar o dia. Fui para o vale dos lençóis e apaguei bem cedinho.
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Este artigo foi originalmente publicado a 10 de setembro de 2023 na primeira versão deste blog "Eu sou por Tu Foste" e agora migrado para aqui.
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Mencionados nesta publicação (do Acervo de Manuel A. Martins Gomes):
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